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pourtant la vie les a rassemblés
pourtant la vie les a rassemblés
la vie voulait faire d’eux
une pâte à modeler
modèle de vie à deux
un seul cœur
un seul corps
un temps une voix uniques
à vue d’œil
le Temps a mal dit
ses contes
le Temps a chiffré
une humeur de trop
l’humeur-fleuve de patience
l’humeur-fiel d’espérance
fleur de loyauté
qui libère la vie
des ombres invisibles
toiles d’araignées vivantes
ombres assassines
du cœur ensoleillé
Fernando Pessoa (1888-1935)
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A lembrada canção
A lembrada canção,
Amor, renova agora.
Na noite, olhos fechados, tua voz
Dói-me no coração
Por tudo quanto chora.
Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.
Não, a voz não é tua
Que se ergue e acorda em mim
Murmúrios de saudade e de inconstância,
O luar não vem da lua
Mas do meu ser afim
Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.
Não, não é teu o canto
Que como um astro ao fundo
Da noite imensa do meu coração
Chama em vão, chama tanto...
Quem sou não sei... e o mundo?...
Renova, amor, a antiga e vã canção.
Cantas mais que por ti,
Tua voz é uma ponte
Por onde passa, inúmero, um segredo
Que nunca recebi —
Murmúrio do horizonte,
Água na noite, morte que vem cedo.
Assim, cantas sem que existas.
Ao fim do luar pressinto
Melhores sonhos que estes da ilusão.
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